O Sangue Negro de Noémia de Sousa

Noémia de Sousa

Noémia de Sousa (1926 – 2002)

O universo literário de expressão feminina em Moçambique começou com a poesia de Noémia de Sousa a meio do século XX. A sua voz, ao protestar contra as opressões sofridas pelas mulheres moçambicanas, representa a resistência da mulher africana e dos povos de África.

Poema: Sangue Negro

Ó minha África misteriosa e natural,
minha virgem violentada,
minha Mãe!

Como eu andava há tanto desterrada,
de ti alheada
distante e egocêntrica
por estas ruas da cidade!
engravidadas de estrangeiros

Minha Mãe, perdoa!

Como se eu pudesse viver assim,
desta maneira, eternamente,
ignorando a carícia fraternamente
morna do teu luar
(meu princípio e meu fim)...
Como se não existisse para além
dos cinemas e dos cafés, a ansiedade
dos teus horizontes estranhos, por desvendar...
Como se teus matos cacimbados
não cantassem em surdina a sua liberdade,
as aves mais belas, cujos nomes são mistérios ainda fechados! 

Como se teus filhos – régias estátuas sem par –,
altivos, em bronze talhados,
endurecido no lume infernal
do teu sol causticante, tropical,
como se teus filhos intemeratos, sobretudo lutando,
à terra amarrados,
como escravos, trabalhando,
amando, cantando –
meus irmãos não fossem!

Ó minha Mãe África, ngoma pagã,
escrava sensual,
mística, sortílega – perdoa!

À tua filha tresvairada,
abre-te e perdoa!

Que a força da tua seiva vence tudo!
E nada mais foi preciso, que o feitiço ímpar
dos teus tantãs de guerra chamando,
dundundundundun – tãtã – dundundundun – tãtã
nada mais que a loucura elementar
dos teus batuques bárbaros, terrivelmente belos... 

para que eu vibrasse
para que eu gritasse,
para que eu sentisse, funda, no sangue, a tua voz, Mãe!

E vencida, reconhecesse os nossos elos...
e regressasse à minha origem milenar.
Mãe, minha Mãe África
das canções escravas ao luar,
não posso, não posso repudiar
o sangue negro, o sangue bárbaro que me legaste...
Porque em mim, em minha alma, em meus nervos,
ele é mais forte que tudo,
eu vivo, eu sofro, eu rio através dele, Mãe!

- Noémia de Sousa, no livro "Sangue negro". Moçambique: Associação de Escritores Moçambicanos, 2001, p. 141-142.

A ‘mãe dos poetas moçambicanos’ nasceu perto do Oceano Índico, em Catembe, Moçambique, a 20 de Setembro de 1926. Aos seis anos de idade mudou-se com a família para Lourenço Marques, actual Maputo. Após o falecimento do pai, em 1932, Noémia de Sousa teve que trabalhar para ajudar a mãe a sustentar os seus 5 irmãos. De noite, começou a estudar no curso pós-laboral de comércio, onde era a única aluna negra da Escola Técnica. Por essa altura, publicou seu primeiro poema – Canção fraterna – no Jornal da Mocidade Portuguesa. Em 1951, encerrou a sua carreira de poetisa e rumou a Lisboa. Em 1962, casou-se com o poeta Gualter Soares, com quem teve uma filha. Por volta de 1964, fugiu da ditadura em Portugal em direcção a Paris. Regressou a Lisboa em 1975, onde trabalhou como jornalista. Faleceu em Cascais, Portugal, a 4 de Dezembro de 2002.

Através da sua poesia, Noémia de Sousa assumiu o papel de porta-voz do povo moçambicano e questionou os problemas culturais, sociais e políticos de seu país. Recorrendo aos versos livres, com adjectivação e exclamação abundante, a sua linguagem apresenta um carácter intimista de forte emotividade, com traços narrativos e elementos nostálgicos. Prevalece, na crítica sociopolítica, uma voz feminina que afirma a negritude e exalta a cultura africana. É uma poesia acusatória e com forte impacto social que denuncia e protesta contra o longo período de dominação pelos colonizadores portugueses. Ela fala-nos de injustiça e opressão mas também de esperança, a esperança de um futuro melhor em liberdade.

Poema: Um dia

Um dia
Quando este nosso sol ardente de África
nos cobrir a todos com a benção do mesmo
calor,
quero ir contigo, amigo,
de mãos dadas, deslumbrados,
pelos trilhos abertos da nossa terra
estranha,
adubada com sangue e suor de séculos...

Nas machambas,
o ruído repercutido de tractor
soará como uma canção de triunfo.
Nas matas,
as tutas já não serão aves apenas
e no centro da vida,
nosso irmão negro, quebradas as grilhetas,
celebrará seu segundo nascimento
num batuque diferente de todos os outros...

Uma luz clara e doce se abrirá para todo
e nós iremos de mãos dadas, amigo,
pelos trilhos verdes de Moçambique.
Na noite,
não mais soluçarão, estertoradas,
canções marimbadas por irmãos
naufragados
(ô mamanô! Ô tatanô!),
Não mais a acusação muda dos olhos
precoces
de crianças de ventres empinados
não mais jaulas erguidas para os
inconformistas
gritando gritos de sangue
através de tudo!

Não mais, noite...
E nós iremos de mãos dadas,
amigo,
pelos trilhos abertos de Moçambique,
mergulhados no clarão eterno do dia
infindável.

- Noémia de Sousa, no livro "Sangue negro". Moçambique: Associação de Escritores Moçambicanos, 2001, p. 114-115.

A obra de Noémia de Sousa está dispersa por muitos jornais e revistas. Seus textos poéticos ficaram famosos ao serem divulgados em diversas publicações de antologias de poesia moçambicana. Apesar de ter influenciado várias gerações de poetas apenas viu um livro editado: Sangue Negro, que foi publicado em 2001, pela Associação dos Escritores Moçambicanos, como uma homenagem pelos 75 anos da escritora. Este livro reúne os 46 poemas escritos por Noémia de Sousa entre 1949 e 1951. Dez anos mais tarde, em 2011, a editora moçambicana Marimbique publicou uma nova edição de Sangue Negro. Em 2016, a editora Kapulana publicou o primeira edição brasileira do livro, que pode ser encontrado aqui. Em 2023, o seu livro ainda não fora publicado em Portugal.


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